terça-feira, 26 de julho de 2022

Enquadrado 


Deve ter sido o olhar do mar

Que marejou teus olhos

 

Deve ter sido o vendaval

O que me vendou

 

O temporal que nos arrancou o tempo

O lodaçal, o que nos enlutou

 

Deve ter sido uma coisinha de nada

Ou quem sabe então um nada demais

 

Nossa língua viva, nossas rôtas rotas

Deve ter sido o nosso deve ser

 

A dar esses tons de amarelo grave

De azul profundo a esmaecer

Sem o que, nesse etéreo quadro,

Em que me varo, crivado

Não poderia ver

 

Teu sorriso espelhando o meu

O teu cheiro me espalhando o chão

 

Talvez não valesse o que me valeu

Talvez não ardesse o que se incendeia

No que de mim será sempre o sempre seu.

 

segunda-feira, 6 de junho de 2022

 Sobremesa


Sobre a mesa

o olhar pausado

o cansaço esparramado


E sobre tudo,

réstia, luz do dia

teimosia cega

brilho inútil, fôrma de poesia


Absorto, mordo

um tolo grão de areia

e a alma verde encerra,

entre os dentes, o chão


Mastigo lâmpadas, tapetes

Sobretudo a sobremesa,

o açúcar amargo,

a desvontade de viver.

quinta-feira, 15 de agosto de 2019



Definição

Sobressalto na beira do agora
Entre o que não fui
e o que não serei

O conceito desconcertado
que me escora
também me abre a cabeça
no meio desse dia 16

Sinta-se falta
ou quer sinta-se muito
Nada muda os nossos mudos corações

estou aqui, contigo,
onde te falo e não me escuto
estou aqui, partido
onde o resto se faz
o que não se forja, a razão.

quarta-feira, 4 de julho de 2018

Opinião

Ao ver na flor de lótus,
um venerável sinal
que indiferente
às turvas águas,
ao bruto lodaçal,
rompe o àspero
e o esperado
irrompe beleza
e retidão,
tolo se torna
quem do símbolo
faz regra,
e não enxerga
além da exceção.

Quem faz da pretensão
sua perda,
sem se aperceber
de sua própria cegueira.

Em resumo:
Nem tudo
que da lama nasce
É flor que se cheira.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

De Novo

Enquanto penteava
seus reticentes cabelos
Perdeu a vontade entre um gesto
e o que seguinte não se fez.

Sobre a mesa encontravam-se
Embaralhadas palavras
Com as quais firme tecia
A si mesma de novo
Novamente e mais uma vez.

Deixou-se assim pendente.
Seu ser no espaldar da cadeira.
Entre um segundo e outro
Um universo a multiplicar.

Nada que fosse conhecido
sob o sol
de um já lívido Janeiro.

Vaidade das vaidades:
Nada menos que tudo mais
é novidade!


O sabe-quase-tudo

Era um daqueles
sujeitos lamentáveis

Uma infelicidade
a nos dar dó

Sabia de tudo
e um pouco mais
do mundo

Sequer sabia
como ignorar.

segunda-feira, 17 de julho de 2017

Lembrança Primeira

Em alguma parte
De em parte alguma
Pintam-se as cores
de antigamente
Caminham-se nas águas
Onde a amargura
Lava seu rosto
Soergue seus braços
Rende-se, rubra,
Redentoramente.

Em alguma parte
De em parte alguma
Sem que de algo
cada um sempre se aparte
Lá é sem que haja
partição nenhuma.